terça-feira, 26 de outubro de 2010

Inevitáveis transições

Não queremos perder nada e, se pudéssemos, teríamos amarradas em nós todas as coisas positivas, os momentos felizes e as pessoas amadas – levando-as conosco feito um tesouro sufocante, pois o que é bom, quando agarrado com unhas e dentes, aprisiona.
...Quando falo da morte, também falo da vida. Quando falo de vida e morte, falo em relações amorosas – ou rancorosas. Quando escrevo sobre palavras ou linguagem, escrevo sobre silêncio e incomunicabilidade.
Esta é, aliás, uma das marcas do ser humano: não saber se comunicar.
Quanta dor, quanto mal-entendido, quanta calúnia, quanto abandono e incompreensão devidos a palavras e emoções mal expressas, mal ouvidas, mal sentidas, insuficientes ou excessivas. Quanta perda, ou melhor: quanto desperdício.
Mas nem todas as perdas são vida jogada fora: algumas são necessárias. É preciso saber alternar as perdas com novos ganhos. Alguns deles, aliás, dependem da anterior perda. Somos contraditórios como tudo o mais.
...Por erro de momento e cálculo, podemos perder tempo e vida – mas podemos ter novos ganhos, se não formos nem tolos nem rígidos demais, se o vício da autoflagelação não superar o de realização. Podemos ter um amor bom porque perdemos o que estava distorcido e ruim. Podemos ter uma vida nova porque superamos a outra, que era tormentosa e falsa. Podemos ter novo projeto de trabalho porque o outro não nos satisfazia mais. Isso é que chamo de arrojo, audácia positiva, salvação.

              Lya Luft

Terremotos

Dizem que passado o terremoto de Lisboa (1755), o rei perguntou ao general o que se havia de fazer. Ele respondeu ao rei:
"Sepultar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos."
Essa resposta simples, franca e direta tem muito a nos ensinar.
Muitas vezes temos em nossa vida "terremotos" avassaladores, o que fazer?
Sepultar os mortos, enterrar nossas perdas, o que passou.
Cuidar dos vivos, cuidar do presente, do que sobrou, do que realmente existe.
Fechar os portos, não deixar as "portas" abertas para novos problemas, cuidar da reconstrução, do que está por vir.

Perdas

Quem de nós já não viveu uma situação de perda na vida? São muitas ao longo de nossa existência. Ganhar ou perder são dois aspectos inerentes a vida. 
Nossa primeira perda acontece quando saimos do aconchego do útero materno. Para vivermos é preciso abondonar o útero e romper o cordão umbilical. Viver, progredir, conquistar, acontece na medida em que abandonamos situações anteriores. Para estarmos em um lugar é preciso abandonar o outro.
Em qualquer idade, perder é difícil e doloroso. Mas, de uma forma ou de outra nossas experiências de perda são determinantes em nossa formação, em nossas escolhas, em ganhos futuros.
Sabendo que  nada dura para sempre devemos amar e respeitar  cada instante de vida.  Amando e respeitando o momento do outro também. Afinal, como eu, o outro tem o direito de ser feliz.
Não devemos nos julgarmos donos de nada nem de ninguém. Somos apenas zeladores de tudo o que nos é dado nesta vida. O apego é o maior dos males, a maior fonte de dor e sofrimentos.
Acompanhar uma pessoa que teve uma perda é ter interesse no que lhe acontece e, sem fazer um culto a tristeza, permitir-lhe não estar radiante por um tempo. Cada perda tem o seu luto e cada luto tem o seu tempo e cada um de nós vive esse tempo de forma única. É importante respeitá-lo. A vida naturalmente segue e vai depender do aprendizado que tivermos com nossas perdas. 

                              Gooto

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A morte devagar


 
Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.

Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.

Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.

Martha Medeiros

Morremos de medo


             
"A única certeza que temos é a de que um dia iremos morrer."  Essa frase, quase um slogan da morte, causa à maioria de nós medo. É uma certeza cheia de dúvidas.  Medo de morrer propriamente dito; medo de sofrer até o momento da morte, ou no momento da morte; medo de perder tudo que achamos ser muito bom nesse mundo, apesar dele ser cheio de coisas muito ruins também; medo de não podermos mais estar na companhia das pessoas que amamos e que ainda estão vivas; medo de não termos tempo para realizar tudo que desejamos realizar nesta vida e, será que haverá outra ou outras para que nossas chances ainda aconteçam?; medo do que vem depois "dela", já que ninguém que conhecemos foi e voltou para nos contar como é, se há. Não vamos discutir sobre religião. Minha intenção é apenas falar das nossas emoções, humanas. Cada um tem a sua crença. Mas "morremos de medo" de morrer. Isso ninguém quer.

                                      Gooto

Há um tempo para cada coisa

Para tudo há um momento e um tempo para tudo o que se deseja debaixo do céu:

Há um tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir.

Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar e tempo de afastar.

Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.

Há tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.
 Eclesiaste 3, 1-8


                                                                                                    

domingo, 24 de outubro de 2010

Pensar é transgredir


Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos. Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.

Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!" O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.

Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.

Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.

Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.

Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.

Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.

E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

                                                                                                                          Lya Luft